Sustentabilidade

Energias renováveis fazem parte do desafio “Sustentabilidade”, que há algumas décadas preocupa a todos nós. Na segunda metade do século 20, especialmente a partir dos anos 1960’s, o crescimento populacional, o aumento da poluição e a demanda da economia por mais matéria-prima e energia, bem como a questão da segurança alimentar, começaram a ganhar a atenção de pesquisadores, organismos nacionais e internacionais, como a Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OECD) e as Nações Unidas (ONU). Porém, é preciso não perder de vista que energias renováveis são apenas um dos desafios da sustentabilidade. Há outros igualmente e até mais importantes.

Em 1962, Rachel Carson publicou o famoso livro “Primavera Silenciosa”, um estudo do impacto negativo sobre a saúde humana e animal dos pesticidas químicos propagados e propagandeados pela indústria química e seus apoiadores nos governos e organismos internacionais, supostamente encarregados de proteger os cidadãos. Sem dúvida, Primavera Silenciosa, é o livro que lançou o movimento ambientalista e a questão da sustentabilidade da vida humana no planeta. O título do livro refere-se ao desaparecimento dos pássaros, dano colateral do uso intensivo dos pesticidas no meio ambiente. Infelizmente, Rachel Carson morreu pouco depois da publicação, mas parte de seus objetivos foram atingidos. Hoje em dia, só os mais velhos se lembram do DDT e das bombas “Flit” usadas domesticamente para combater mosquitos. Ainda que a questão de pesticidas e de seus danos diretos e colaterais ainda esteja muito viva, hoje há mais restrições e controles sobre seu uso, nem sempre observadas ou bem sucedidos.. O autor penintencia-se por ter se divertido, quando criança a brincar com as bombas Flit, mirando em mosquitos e acionando-as. Era muito engraçado e o cheiro irresistível (também prejudicial à saúde).

O desafio, porém, vai muito além de pesticidas, e inclui muitos outros produtos industriais (como adubos, por exemplo) utilizados em larga escala para a agricultura intensiva necessária para alimentar bilhões de seres humanos. São práticas não sustentáveis, que causam severos danos ambientais e para a saúde humana. Aqui está o que a National Oceanographic and Atmospheric Administration (NOAA) dos Estados Unidos tem a dizer (https://www.noaa.gov/news-release/noaa-forecasts-average-sized-dead-zone-for-gulf-of-mexico):

“A zona morta anual do Golfo do México [Nota do autor: cuja extensão, numa média de 5 anos, superava 13.000 km2, segundo a mesma fonte] é causada principalmente pelo excesso de poluição por nutrientes de atividades humanas em áreas urbanas e agrícolas em toda a bacia hidrográfica do rio Mississippi. Quando o excesso de nutrientes atinge o Golfo, eles estimulam um crescimento excessivo de algas, que eventualmente morrem e se decompõem, esgotando o oxigênio à medida que afundam no fundo. Os baixos níveis de oxigênio resultantes perto do fundo do Golfo não podem suportar a maior parte da vida marinha. Peixes, camarões e caranguejos geralmente nadam para fora da área, mas os animais que são incapazes de nadar ou se afastar são estressados ou mortos pelo baixo oxigênio. A zona morta do Golfo do México ocorre todo verão.”

Não é muito diferente com as energias renováveis. Seus impactos ambientais são sentidos de forma aguda, por exemplo, no caso da energia hidroelétrica e de suas grandes barragens. Veja, por exemplo, o que diz a Agência FAPESP, em 8 de maio de 2024:

“O impacto socioambiental causado pela usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, já foi classifcado como “desastre” por pesquisadores, ambientalistas e diferentes veículos da mídia. Os danos voltaram a ser apontados, recentemente, em relatório de vistoria produzido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). De acordo com o documento, foram constatados assoreamento e obstáculos à navegação no rio Xingu, alta mortalidade de árvores e inviabilização da reprodução de peixes, além da desestruturação do modo de vida de povos indígenas e comunidades ribeirinhas.”

O artigo original você encontra aqui: https://agencia.fapesp.br/inseguranca-alimentar-afeta-moradores-da-regiao-impactada-pela-hidreletrica-de-belo-monte/51603. Um ponto importante deste artigo é que ele destaca o lado humano - são os mais pobres os que mais sofrem - da sustentabilidade, muitas vezes negligenciado nos estudos acadêmicos e nos prodigiosos relatórios produzidos por organismos internacionais e corporações. Assim como existe lavagem de dinheiro, existe lavagem de sustentabilidade… (greenwashing, como se diz em inglês.

Como alimentos são uma forma de energia, indispensável para nossa sobrevivência, vemos que tanto para nos alimentarmos, como para alimentarmos as máquinas de nossa civilização industrial, a questão da sustentabilidade é crucial.

Na década seguinte ao livro de Rachel Carson,, o incrível Aurelio Peccei, magnata italiano, CEO da FIAT, fundador da Alitalia e instigador do IIASA (International Institute for Applied Systems Analysis), resistente anti-fascista durante a Segunda Guerra Mundial, feito prisioneiro e torturado pela polícia de Mussolini, humanista contumaz, “generalista sem cura”, segundo ele mesmo, e poderoso ativista político fez um discurso que mudou para todo o sempre a discussão sobre Sustentabilidade. Este discurso poderia muito bem ter passado inteiramente desapercebido ou não ser mais do que uma nota ao pé da página da biografia de Peccei, não fora por um leitor ilustre (o que demonstra a notoriedade internacional que Peccei já possuia), Dean Rusk, Secretário de Estado dos Estados Unidos. Vejamos como o assunto é resumido no artigo Re-discovering Aurelio Peccei’s contribution to Futures Studies de Carolina Facioni and Roberto Paura (European Journal of Futures Research, (2022) 10:9
https://doi.org/10.1186/s40309-022-00193-8).

“A ênfase de Peccei na velocidade crescente de qualquer processo, especialmente nos países mais desenvolvidos, e nas possíveis consequências disso, é crucial. Em uma palestra que proferiu no Colégio Militar Nacional de Buenos Aires (em 27 de setembro de 1965), intitulada “O desafio dos anos 1970 para o mundo de hoje”, ele se concentrou em como as diferentes velocidades da evolução tecnológica estavam criando novas desigualdades sociais entre os países do mundo:

… Na história da humanidade, é possível identificar longas fases de evolução lenta quebradas por períodos de intensas mudanças, que podem ser comparadas às mutações na vida da espécie. Quando a discórdia dos novos métodos técnicos tornava uma comunidade mais forte, ela invariavelmente conquistava e eliminava comunidades ou raças vizinhas mais atrasadas. Cada uma dessas etapas em andamento, muitas vezes separadas umas das outras por milhares de anos, provocou necessariamente uma mudança correspondente na ordem social. A última mudança foi provocada pela revolução industrial, que teve seu início há dois séculos na Grã-Bretanha e depois se espalhou para um certo número de outros países, que são referidos hoje como "industrializados". O fator avassalador, que marcou o advento da era moderna, foi a invenção de máquinas poderosas destinadas a multiplicar a capacidade de trabalho do homem. A consequência dessa transformação tecnológica pode ser medida observando como os países não tocados pelo milagre industrial, os países subdesenvolvidos, permaneceram atrasados em todos os sentidos: estrutura social, sistema político, padrão econômico e, acima de tudo, capacidade de progresso futuro…”

A percepção dos desafios da sustentabilidade, ao mesmo por uma pequena fração de são multi-dimensionais e colocam em risco o futuro da Humanidade. Dean Rusk, por alguma razão, tomou conhecimento deste discurso e chamou Peccei para uma conversa. Esta reunião inspirou a fundação do Clube de Roma, que publicou em 1972 o controverso livro Limits to Growth (Limites ao Crescimento) e levou, em última análise, ao famoso Relatório Brundtland das Nações Unidas, que definiu desenvolvimento sustentável (ver Sustainability and the forgotten, Gary E. Machlis) :

Desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. Contém em si dois conceitos-chave:
(1) o conceito de "necessidades", em particular as necessidades essenciais dos pobres do mundo, às quais deve ser dada prioridade primordial; e
(2) a ideia de limitações impostas pelo estado da tecnologia e da organização social à capacidade do ambiente de atender às necessidades presentes e futuras

É importante salientar o conceito de “necessidades”, que chama atenção para as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem ter uma prioridade primordial. Este é um assunto pouco tratado nas discussões sobre sustentabilidade, mas que fique claro de uma vez por todas: falar de sustentabilidade sem levar em conta, explicitamente, as necessidades dos mais pobres não faz sentido.

No Brasil, país do futuro e abençoado por Deus (mesmo que seja a Argentina que leve o Papa), a urgência de levar a sério a sustentabilidade está ficando cada vez mais clara. Depois de vários ensaios gerais, com inundações, deslizamentos de morros, e mortes pelo país afora, no Rio Grande do Sul, a Natureza resolveu partir para a extinção em massa (ou quase). As enchentes que lá ocorrem no momento em que o Autor escreve estas linhas (maio de 2024) mostram algumas coisas com a claridade da água limpa:

1. A ocupação do solo por uma população crescente, permitida por sucessivos governos e cidadãos indiferentes à Ciência, em regiões onde as enchentes eram não apenas previsíveis, mas fatos históricos, só poderia terminar com terminou. É óbvio que cidades ribeirinhas terão de ser abandonadas e deslocadas para regiões mais altas, a menos que queiram ser arrasadas novamente. As grandes enchentes voltarão com maior frequência daqui para a frente. Quando não forem substituídas por secas igualmente destrutivas. As imagens que as televisões nos mostram a todo momento são terríveis. Bairros inteiramente aniquilados, sem uma casa em pé (nas palavras da repórter - “parece Gaza”), mostram que com a Natureza não se brinca.

2. Como ficam os pobres e abandonados da sociedade, face a catástrofes ambientais? Deveriam fazer como os ricos, ora bolas!. Vejamos o que diz o jornal O Globo:
“’Fugindo do front' e 'ansiedade por notícias': a vida de gaúchos que fugiram às pressas da devastação em Porto Alegre / Famílias encontram abrigo e segurança em cidades litorâneas do Rio Grande do Sul”
(https://oglobo.globo.com/brasil/sos-rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/09/fugindo-do-front-e-ansiedade-por-noticias-a-vida-de-gauchos-que-fugiram-as-pressas-da-devastacao-em-porto-alegre.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria)

Porque os pobres teimam em não ir para suas casas de praia para escapar dos problemas de sustentabilidade criados pelo modo de vida dos ricos do mundo? É incompreensível.

Em resumo, a sustentabilidade tem tudo a ver com o crescimento populacional, com o “desenvolvimento” de um PIB que precisa andar sempre a crescer, com o combate às desigualdades econômicas e sociais e ao consumerismo desenfreado de nossa civilização. Ela não se limita a “inovações” tecnológicas para a transição energética, ao carro elétrico, a reciclagem do lixo que produzimos em quantidades brutais. Tudo isto é importante, mas, se deixarmos de lado a dimensão social da sustentabilidade, não iremos resolver o problema.