Para os suficientemente velhos, não havia imagem mais patética da decadência da falecida União Soviética, do que a presença no púlpito dos desfiles comemorativos da Revolução de Outubro (1917), de velhos caquéticos, provavelmente mantidos em pé por seguranças ocultos, capitaneados pelo patético-mor, o Secretário-Geral, do Partido Comunista de 1964 até sua morte em 1982, Leonid Brezhnev. A cena era cômica e trágica ao mesmo tempo. O cheiro de podre sentia-se nas fotos. À morte de Brezhnev sucederam-se rapidamente outros velhos mais para lá do que para cá, até que Gorbachev assumiu o poder. Finalmente um apparatchik, não jovem nem na flor da idade, mas maduro, sem estar a cair de podre. Gorbachev queria reformar o sistema oligárquico-burocrático-repressivo da União Soviética, removendo a repressão, mas deixando o resto intacto. Deu no que deu. A poderosa União Soviética, com seus satélites do Leste Europeu, ruiu do dia para a noite, com a queda do muro de Berlim em outubro (sempre outubro) de 1989 e o fechamento definitivo da loja de departamentos URSS um ano mais tarde. Isto só foi surpresa para alguém que não quisesse ver o que estava escrito nos corpos e faces de seus dirigentes. Ronald Reagan, outro caquético com Alzheimer, ficou com os louros que não eram seus, de haver derrotado o Império do Mal. Ele foi apenas o ocupante da Casa Branca em cujo mandato o inevitável aconteceu. O que não impede que ainda haja nostálgicos do grande homem. A histeria que se seguiu, nos Estados Unidos, a esta vitória de Pirro, foi incontrolável. Até um idiota, pelo qual a grande imprensa de embeveceu, publicou “O fim da história” em homenagem ao evento. Mesmo uma leitura superficial do livro é suficiente para se perceber que se trata de uma obra-prima de imbecilidade acadêmica americana.
Putin tem razão quando vê na queda do império soviético o mais importante catástrofe geopolítica do século XX, mas não pelas razões que ele parece imaginar. Foi uma catástrofe para o Ocidente, ainda mais do que para a Rússia. Nenhum outro evento, nem as guerras, os massacres, o Holocausto, a mini-saia e o computador se igualam ao desmoronamento de um império ideológico e militar se que estendia da Europa Oriental ao Pacífico e que sobreviveu por sete décadas. O que sobrou depois da desmembramento da URSS e a liberação de seus satélites, a velha Rússia, ainda é o país com a maior superfície de todos: 17 milhões de quilômetros quadrados, duas vezes a área do Brasil. É verdade que pouco mais de cem e quarenta milhões de habitantes chacoalham dentro de tanto território. E vão chacoalhar cada vez mais, pois a taxa de fertilidade de sua população feminina é de 1,5 por útero. Até meu neto sabe que isto não é o suficiente para nem sequer repor a população, quando mais mantê-la estável. Isto significa que em uma geração, a população diminuirá de cerca de 25%, se as belas russas não forem colocadas em uma dieta rigorosa de Fertilina, o adubo que faz crescer a Humanidade. Quem tem medo do urso russo? É verdade que o mesmo encolhimento da fertilidade feminina observa-se por todo o mundo “desenvolvido”. (Uma solução seria, naturalmente, estimular a reconversão de membros do sexo masculino para o sexo feminino, dotando-se de úteros artificiais, até que os países possam voltar a uma taxa de fertilidade de 2.)
É fato que o armamento nuclear russo e sua capacidade de despachá-lo em volta ao mundo é respeitável. Mas, ele só serve para destruir (um inimigo invasor?) Você não começa a invadir um território com a intenção de ocupá-lo mais ou menos permanentemente, aniquilando sua infraestrutura e envenenando seu meio ambiente com um banho de mísseis nucleares. A demografia favorável é um elemento essencial para construir um império expansionista. É necessário ter um grande número de botas (com pés dentro) no terreno. Assim como Israel está a fazer na faixa de Gaza e na Cisjordândia. Quando se vai olhar a distribuição etária da população russa, a população masculina de idade entre 15 e 54 anos é de 38 milhões (https://www.statista.com/statistics/1005416/ population-russia-gender-age-group/). Menos do que a população do estado de São Paulo. A figura mostra a distribuição etária desta população, em milhões. Lembremos que a expectativa de vida na Rússia situa-se entre 69 e 70 anos. Ter cinquenta e cinco anos já é ser velho. Os homens de hoje entre 30 e 45 anos nasceram entre 1980 e 1995. A partir de 1995, a população masculina cai abruptamente. Consequências da perestroika? Das ainda piores condições de vida que se seguiram à queda do Império? Emigração? Deixemos isto para os demógrafos profissionais. O que interessa aqui é que a população suscetível de ser convocada para uma guerra de alta intensidade em material humano simplesmente não é suficiente. Lá se foram os bons tempos em que o tio Stalin podia se dar ao luxo de mandar milhões de homens para a morte. E os bons tempos, como todos sabemos, não voltam mais.
Conclusão número um: a Rússia é um urso de papel, incapaz de invadir a Europa, por absoluta falta de homens. Fazer uma “limpeza” nuclear, sim. Mas, isto somente se os americanos doidos incitarem a OTAN e invadir a Bielorússia ou entrarem com soldados na Ucrânia. Houve um tempo em que eu diria, mas nem os americanos são tão doidos. Mas, quando olho para o caquético Brezhnev, perdão Biden e Trump, já não tenho tanta certeza. A hiper-histeria mediática em torno de invasão da Ucrânia – se a Ucrânia cair, cai o mundo – não tem base na realidade dos números. Além do mais, a teoria do dominó já se provou falsa na guerra do Vietnam.
Então, porque a guerra da Ucrânia? E, mais importante ainda, quem tem chances de ganhá-la? Comecemos pela segunda pergunta. Como em toda a guerra de atrito, e é nisto que se tornou a guerra, vai ganhar quem tiver mais capital, inclusive humano, para queimar e mais paciência para aguentar o tranco. Ora, basta olhar as populações relativas da Ucrânia e da Rússia. Em 2022, 19 milhões de homens de todas as idades na Ucrânia e 68 milhões na Rússia. Quanto a material bélico para queimar? Enquanto a indústria de armamentos da Rússia roda a todo o vapor e ela pode conseguir equipamentos de outros países (p. ex., toneladas de drones do Irã), o “Ocidente” pena para limpar suas gavetas para encontrar armas (de preferência obsoletas) e munições para a Ucrânia. Em resumo, vamos lutar até o último homem para salvar o Ocidente de uma devastadora invasão russa. O último homem ucraniano, é claro. De uma invasão que não é nem um risco crível. Ademais, a Rússia é uma democracia totalitária, com total controle das comunicações. Alguém acha que mesmo que os russos estejam cansados da guerra, eles irão derrubar Putin?
Conclusão número dois: não sobrou ninguém na União Europeia que saiba pensar estrategicamente o futuro da Europa. Esqueçamos os Estados Unidos e o cambaleante Reino Unido, cujas elites há muito perderam a capacidade de pensar estrategicamente o mundo em que vivemos. Em lugar de negociar, de olhos bem abertos e duramente, com Putin e trazer a Rússia de volta para a esfera europeia antes que Xi Jiping a engula na esfera da China, as elites europeias preferem dar ouvidos à media do que aos seus próprios interesses nacionais. Seria muito louvável deixar seus próprios interesses de lado para lutar bravamente, ombro a ombro com os ucranianos sofredores. Como se não fosse do interesse de todos, inclusive dos ucranianos, negociar duro com Putin para colocar um fim a esta guerra insana. Não é que eu não tenha pena da Ucrânia, o México russo (tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos). Levante a mão quem acredita que os americanos deixariam o México juntar-se à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (Armênia, Belarus, Kazaquistão, Kyrgyzstão, Rússia, e Tajiquistão). Tenho pena do acidente histórico geográfico que os fez nascer tão perto do urso russo. Mas, não seria menos horrorosa uma partição entre uma Ucrânia de etnia ucraniana e outra de etnia russa, vivendo em paz, do que a mortandade sem fim que estamos vendo?
E o interesse econômico da Europa, como é servido pela guerra da Ucrânia? Comecemos pelas sanções capazes de, supostamente, colocar a Rússia de joelhos em poucos meses. Alguém notou que isto não aconteceu? Que, ao contrário, a economia que foi colocada de joelhos foi a da Europa, com uma inflação brutal, taxas de juros altas e preços de energia na estratosfera? Com insatisfações sociais transbordando em manifestações populares e na subida das intenções de voto das extremas-direitas por toda a parte? Na Alemanha, mesmo a imprensa conservadora (não que haja alguma outra digna de nota) já se deu conta disto. Berliner Zeitung, de 1º de fevereiro de 2023: “Bericht: Ohne russisches Gas ist Deutschland keine industrielle Supermacht mehr.” Informe: Sem o gás russo a Alemanha não é mais uma superpotência industrial. Como se não bastasse a China e lhes morder os calcanhares. Onde está a inteligência estratégica das elites da União Europeia? O que pode estar a acontecer neste estranho mundo?
Voltemos ao começo. Alguém já percebeu as semelhanças entre a decadência dos Estados Unidos e seus líderes políticos para lá de passados do ponto com a União Soviética nos seus estertores? Certamente, isto não significa que o mesmo acontecerá com os Estados Unidos. Afinal, a União Soviética nunca teve o poder global destes últimos. Era e é, para desagrado do Putin, um poder regional, como disse Obama, com armas nucleares. Mas, se o centro não vai se esfacelar a la Perestroika, o que vai acontecer na periferia? Aliás, o único líder politico americana capaz de implementar uma versão chinfrim da Perestroika chama-se Trump. Prestem atenção no que ele diz. É o único candidato que tem um programa, por mais surreal, megalomaníaco, insano e destrutivo que seja. Imensas saudades dos políticos sem programas… Mais e mais países como o Brasil irão perceber que amarrar-se à visão do mundo dos americanos é um erro estratégico que custa caro. Na sua fome de poder e medo de perder influência, os Estados Unidos estão destruindo a União Europeia. Em lugar de se ocupar em se proteger da China, preferem fazer uma guerra na Ucrânia, onde estão condenados à derrota, e apoiar Israel, um aliado sustentado a custa de bilhões e bilhões de dólares dos contribuintes americanos e que não dá a mínima para Biden e seu governo de eunucos.
Olhemos para a explosão do gasoduto Nordstream, até hoje não explicada. Será que dá para acreditar que os serviços de inteligência de toda a EU combinados não conseguem nem descobrir quem foi? Ou, o que é mais provável, descobriram e não podem dizer? Seymour Hersh, jornalista investigativo dos melhores do mundo, hoje com 87 anos, mostrou de forma bastante convincente que foram os Estados Unidos, com a cumplicidade da Noruega que explodiram o gasoduto que ligava a Alemanha ao gás russo. (https://www.democracynow.org/ 2023/2/15/nord_stream_sy_hersh) Inteiramente por acaso, o gás Noruega se substituiu ao gás da Rússia e as caixas registradoras em Oslo não param de tilintar. Mas, calma aí! Não são os Estados Unidos os mais queridos aliados da Europa? Não são eles os donos da OTAN, último bastião de defesa da democracia contra os bárbaros do Leste? Quem já ouviu falar em sabotar seus próprios aliados? A pretexto de asfixiar a Rússia economicamente e forçá-la a recuar na Ucrânia? Asfixiaram a Alemanha. Ora, ou as lideranças estratégicas dos Estados Unidos estão entre as mais estúpidas do mundo e não perceberam que a Rússia de Putin não é derrotável por sanções econômicas, ou então detonar o gasoduto foi uma mensagem clara para a Alemanha: não vamos permitir concorrência contra nós na Europa: não permitiremos um eixo econômico Berlim-Moscou fora de nosso controle. É um caso típico de serrar o galho em cima do qual estão sentados… os outros. Quanto tempo vai demorar para a Alemanha ter uma liderança menos passiva, menos castrada, mais atenta à realidade, mais capaz de defender os interesses nacionais (se é que sobraram interesses nacionais na Europa do euro, dominada pelos mercados financeiros ou em algum outro lugar do mundo?) que faça como fez de Gaulle: saia da OTAN. O único caminho talvez seja, de fato, colocar um fim à guerra da Ucrânia e seguir o velho ditado: “se não podes vencê-los, una-se a eles”. Baerbock não é Ribbentrop, Putin não é Stalin e 2024 não é 1939, mas alguém deveria estar negociando um pacto Berlim-Moscou por detrás do palco. Se, ao menos, houvesse sobrado inteligência nas lideranças europeias. O que aconteceu?
O mundo ao final do século 21 será muito diferente do mundo no seu início. Bem faria o Brasil de se preparar para ele.
Nota ao pé da página: o Professor Romboedro detesta Putin com todas suas forças (as do Professor Romboedro, não as do Putin, que são bem maiores). Assim como detesta líderes autoritários em geral, sancionados ou não por processos democráticos (caso Trump seja reeleito, mas ainda há Órban, Erdogan, etc etc etc). Putin e seu regime não vão durar para sempre, quando mais não seja porque ainda não sabemos como fazer de nossos líderes imortais de verdade. Quem virá depois dele, provavelmente, não será melhor. Mas, aconteça o que acontecer, a Rússia e os russos continuarão a existir por um bom tempo, independentemente de seus líderes. A Rússia continuará a estar em seus 17 milhões de quilômetros quadrados, até que a China ocupe Taiwan e volte suas atenções para territórios a serem conquistados. A etnia ucraniana tem direito, já plenamente conquistado com o derramamento de seu sangue nos últimos dois anos, a ter seu pedaço de terra em paz. Pedaço que terão de continuar a defender, mesmo que alguma solução semelhante àquela aqui proposta venha a ser implementada. Aceitar uma negociação de paz não significa aceitar uma derrota. A Ucrânia pode sentar-se à mesa com a cabeça erguida.
Este post foi inspirado pela leitura do livro “La défaite de L’Occident” (A derrota do Ocidente), editora Gallimard, 2024, de Emanuel Todd, historiador, demógrafo e cientista político francês. Sem concordar com tudo o que ele escreve, não dá para deixar de reconhecer que ele merece ser lido com atenção.