Sustentabilidade e a lei Moral

Comecemos recordando o Relatório de 1987 da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, “Nosso Futuro Comum”, também conhecido como Relatório Brundtland, o nome de sua Presidente, ex-Ministra do Meio Ambiente e Primeira-Ministra da Noruega. Ele diz, em seu Parágrafo 27:

“27. A humanidade tem a capacidade de tornar o desenvolvimento sustentável para garantir que ele atenda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades. [Negrito do Autor.] O conceito de desenvolvimento sustentável implica, sim, limites – não limites absolutos, mas limitações impostas pelo estado atual da tecnologia e da organização social sobre os recursos ambientais e pela capacidade da biosfera de absorver os efeitos das atividades humanas. Mas a tecnologia e a organização social podem ser gerenciadas e aprimoradas para abrir caminho para uma nova era de crescimento econômico.”

Olhemos, agora, a questão ética que este parágrafo, implicitamente, coloca para todos nós. Há muitos filósofos e muitas éticas, mas aquela que melhor se aplica é a lei Moral de Immanuel Kant, que dá um exemplo que vai direto ao coração deste parágrafo.

Immanuel Kant (1724 – 1804) foi um grande filósofo do Iluminismo, cujas profundas ideias (alguns espíritos de menos boa vontade diriam “impenetráveis ideias ”) ocupam filósofos profissionais e amadores até hoje e por muito tempo ainda. Ele era um tipo peculiar. A regularidade de suas caminhadas por Königsberg, a cidade natal da qual nunca se afastou, que permitia aos vizinhos acertarem os relógios das casas por onde passava. Naturalmente, há um certo exagero nisso, mas ninguém pode negar que Kant era um homem de comportamentos e pensamentos de extraordinário rigor. Dizem que, apesar disto, era muito sociável e recebia regularmente seus amigos para bate-papos memoráveis, uma comidinha e alguma cervejinha. Não sei se fizeram outros filósofos como Kant antes ou depois dele. A sua obra é extensa. A mais famosa de suas obras (e a menos lida – como disse algum sábio, “ninguém lê livros famosos, mas todo mundo os conhece”) é, sem dúvida, “A crítica da razão pura” na qual ele expõe o núcleo de sua filosofia em cerca de mil páginas. Mas, neste momento, o que nos interessa é a Ética de Kant, cuja formulação antecede à Crítica da Razão Pura.

A Ética de Kant caracteriza-se por ser uma Ética deontológica, isto é, baseada na noção de dever. Não é uma ética baseada nas consequências de nossos atos e na sua capacidade de produzir maior ou menor felicidade, mas na obediência à lei Moral. Não a lei dos juristas, mas aquela lei muito mais fundamental que nós, como seres racionais – e Kant colocava ênfase total na racionalidade – nos impomos a nós mesmos e à qual nos submetemos de bom grado, porque é a coisa certa a fazer. Esta é a noção de autonomia do ser racional na Ética kantiana: somos autônomos para cumprir o nosso dever de obedecer uma lei superior que nós formulamos para nós mesmos e que é compartilhada por todos os outros seres racionais. Ele dá a esta lei o nome de imperativo categórico. Suas definições de imperativo categórico são várias, por isto, vamos introduzir uma delas por meio de um exemplo dado pelo próprio Kant (com alguns embelezamentos).

Suponhamos que precisemos de dinheiro para pagar uma operação que salvará a vida de nosso filho e que não o temos. Entretanto, conhecemos alguém que é muito rico e tem mais do que o suficiente. Só que sabemos que esta pessoa não irá nos doar o dinheiro. Na melhor das hipóteses, poderá emprestá-lo. Só que, naturalmente, vai querer o pagamento do empréstimo, decorrido um certo prazo. Infelizmente, não é apenas agora que não temos o dinheiro. Sabemos que nunca teremos o suficiente para pagar o empréstimo. Como o importante para nós (mas não para a Ética kantiana) é salvar a vida de nosso filho, procuramos esta pessoa e nos comprometemos a pagar a dívida num certo prazo. Lembremo-nos: não temos a menor intenção de o fazer, porque sabemos que não teremos o dinheiro.

Kant nos diz que este ato é errado, imoral, porque a lei Moral tem de ser baseada em máximas (princípios de comportamento) que podem ser universalizadas. É claro que a universalização da máxima “pegar dinheiro emprestado sem a intenção de pagar a dívida” teria consequências catastróficas. Ninguém mais emprestaria dinheiro e todo o sistema de crédito do mundo ruiria. Assim, esta máxima não pode servir de base a uma lei Moral. A razão nos impõe (imperativo), pelo fato de sermos racionais, e sem nenhum outro condicionante externo (categórico, a priori) a obediência à nossa própria lei, dependendo da resposta à pergunta: você viveria num mundo onde a sua máxima fosse universal, isto é, seguida por todos seres racionais? Se a resposta for não, a sua máxima não pode ser um imperativo categórico e não é base para uma lei Moral. Se a resposta for sim, é um imperativo categórico ao qual você deve toda obediência. Para Kant, ser livre significa precisamente seguir livremente os ditames da razão e, na definição de moral, particularmente, s imperativo categórico.

Voltemos ao início. A frase essencial do Parágrafo 27 do Relatório Bundtland é: “A humanidade tem a capacidade de tornar o desenvolvimento sustentável para garantir que ele atenda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades.” O uso que fazemos dos recursos naturais é como um empréstimo que tomamos à Natureza. Se este uso for predatório, de tal forma que a Natureza não tenha condições de se regenerar para assegurar às futuras gerações o acesso a eles, estaremos comprometendo a capacidade de gerações futuras, nossos descendentes, de satisfazer a suas próprias necessidades. Ou seja, estamos tomando emprestado sem a menor intenção de pagar o empréstimo, de tal forma que o recurso possa ser re-empregado no futuro. Violamos assim, o imperativo categórico da lei Moral de Kant. Se todo mundo fizer uso dos recursos naturais sem pensar nas futuras gerações é uma máxima que não pode ser universalizada sem comprometer irremediavelmente o patrimônio da Natureza, que nos sustenta e que tem se ser passado de geração para geração.

Kant não hesitaria em classificar a Sustentabilidade como um imperativo categórico e a violação de seus princípios como uma violação da lei Moral. A Sustentabilidade e a Ética kantiana andam juntas. A punição por esta violação da lei Moral que o ser humano racional impõe a si mesmo, em nome do imperativo categórico e de autonomia como ser livre, recairá sobre nossos descendentes e não sobre nós mesmos. A imoralidade é óbvia.